segunda-feira, 15 de março de 2010

Educação dos filhos

Acerta a Justiça de Timóteo (MG) ao condenar casal que tirou filhos da escola para educá-los em casa?
Jornal Folha de S.Paulo, 13/03/10
SIM
A saída não é o isolamento
RUDÁ RICCIO
CASO recente em que a Justiça de Timóteo (MG) condenou pais que retiraram seus dois filhos adolescentes da escola para ensinar-lhes em casa, prática que nos EUA é conhecida como "homeschooling", abre um importante debate sobre o papel da educação brasileira ("Juiz condena pais por educar filhos em casa", Cotidiano, 6/3).
O juiz apoiou-se no artigo 55 do Estatuto da Criança e Adolescente, que obriga pais a matricular seus filhos na escola. Mas a questão não se atém à interpretação da lei. Ela é mais complexa e merece maior reflexão. Destaco quatro pontos que merecem maior aprofundamento:
1) Nossa cultura privilegia a responsabilidade da comunidade. É o oposto da cultura anglo-saxônica, que imputa ao indivíduo em qualquer idade a responsabilidade e a punição de seus atos julgados improcedentes. Em países latinos como o nosso, compreende-se que os adultos e a comunidade são responsáveis pela passagem da criança à vida adulta. Daí que um ato infracional de uma criança é depositado como responsabilidade de seus pais ou responsáveis. No caso dos adolescentes, a situação é mais complexa: considera-se que são responsáveis por seus atos, mas não imputáveis, justamente porque ainda transitam para a vida adulta. As medidas socioeducativas são ações de reeducação e socialização.
2) Esse desconhecimento atinge mais fortemente a classe média brasileira. Estudo recente de Amaury de Souza e Bolívar Lamounier apresenta um quadro estarrecedor, em que a família aparece como o mais importante agrupamento social confiável (para 85% dos pesquisados), superando em muito o segundo, de amigos (confiável para apenas 43%). A participação em organizações sociais é praticamente desconsiderada. Esse é um elemento cultural que compõe a "ideologia da intimidade", em que se desconsidera a solidariedade societária, as instituições e os espaços públicos. O caso de Timóteo reforça, na prática, a resolução de problemas com as políticas públicas pela própria família. No limite, estaríamos nos desgarrando socialmente, esgarçando a sociedade em ações individualistas.
3) Há outros exemplos que poderiam ter gerado inspiração nos pais no caso de Timóteo e que também são originários dos EUA, como é o caso da Charter School, escolas administradas por pais que são avaliadas periodicamente pelo Estado e até mesmo recebem subvenção pública. Mas essa opção não faz parte da cultura da classe média brasileira porque ela desconfia de tudo o que não é família.
4) O mais grave, contudo, é a banalização da educação como prática ao alcance de não profissionais. Tão grave quanto a situação da educação pública é a saúde e a segurança públicas. Mas não houve nenhum movimento de cidadãos para operar os filhos em suas próprias residências ou para perseguir bandidos com armas privadas. O que faz uma família acreditar que sabe educar seus filhos em suas casas, desconsiderando a formação de tantos profissionais da área, sem que tenham habilitação, estudo e experiência? Por que não criamos uma articulação de pais para lutar pela melhoria da educação? Por que não se pensa o futuro dos outros filhos, dos brasileiros desconhecidos por nós?
A educação é um ato solidário e de socialização. Autores reconhecidos, como Lev Vygotsky, comprovaram o quanto estímulos de turmas heterogêneas criam situações de desenvolvimento de muitas áreas da inteligência humana, além de desenvolver a tolerância diante do diferente. A educação restrita ao seu próprio lar é pobre e meramente instrumental.Vivemos um período de banalização de tudo o que é público. Não percebemos o efeito bumerangue, que nos atinge em cheio, assim como atinge o futuro de nossos filhos. A saída isolada, de mero benefício aos membros de nossa família, a redução da educação ao sucesso individual é uma triste declaração de falência de nossa sociedade, da esperança de viver juntos, entre diferentes que se respeitam e que constroem soluções coletivas.Talvez esses pais de Timóteo não merecessem punição em virtude de sua boa vontade e intenção. Mas eles erraram e não podem ser exemplo para nenhuma criança ou adolescente.
RUDÁ RICCI, 47, doutor em ciências sociais, é consultor educacional do SindUTE-MG (Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais) e do Sinesp (Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo).

NÃO
Pela liberdade de educar
LUIZ CARLOS FARIA DA SILVA
NÃO HÁ espaço suficiente aqui para abordar os vários aspectos da decisão judicial que condenou Cleber Andrade Nunes. É perfeitamente possível, entretanto, argumentar a favor dos pais.
Tomemos dois pontos presentes nos discursos daqueles que, ao lado da autoridade judicial, condenam os pais: os alegados prejuízos à socialização das crianças e o laxismo fatalista que acompanha o reconhecimento do nível catastrófico da qualidade da instituição escolar em nosso país.
Quanto à questão da socialização, note-se que no Brasil não há pesquisa longitudinal, internacionalmente reconhecida, sobre os impactos dos cuidados infantis na trajetória de desenvolvimento socioemocional e cognitivo das crianças e no comportamento juvenil. Enquanto isso, evidências oriundas de pesquisas longitudinais, cujos resultados são publicados em revistas líderes mundiais em fator de impacto no campo, negam suporte às teses defendidas pela maioria dos experts brasileiros nesse tema.Por outro lado, em países como França, Inglaterra e EUA, em que essa modalidade de educação não é interditada, ainda que seja regulada, não consta que haja epidemia de sociopatia entre as crianças cujos pais a praticam. Nos EUA, por exemplo, o Departamento de Educação diz que 1.508.000 crianças e adolescentes estudavam sob alguma modalidade de educação domiciliar em 2007.
Os que querem anular o direito dos pais de escolher o tipo de educação dada aos filhos negligenciam o fato de que a experiência escolar é hoje, muita vezes, ocasião de sofrimento, pois escolas e educadores são cada vez mais despojados dos instrumentos de mediação e controle dos conflitos. Ou de contenção de ações antissociais.
Eles se preocupam com a proteção dos "direitos da criança" contra o autoritarismo e a unilateralidade da visão de mundo dos pais. Mas as crianças precisam de mais proteção contra o grupo de iguais do que contra os pais, lembra Hannah Arendt.
O autoritarismo do grupo de iguais é muito mais cruel, implacável e devastador por um ser em processo de formação de personalidade. Hoje, na escola, crianças que não se enquadram no padrão médio são impiedosamente desdenhadas pelo grupo. E são cada vez mais numerosos os casos em que do desdém, e mesmo da troça, passa-se à agressão física.
Quanto à qualidade da instrução, a tolerância nacional diante do fracasso escolar tem crescido. Dados do MEC mostram que a probabilidade de uma criança brasileira encerrar os anos iniciais do ensino fundamental com desempenho em língua portuguesa e matemática abaixo do mínimo esperado é altíssima.
A lassidão ante o baixo padrão não se limita à instrução. Há o aspecto da formação. Nem aos leigos escapa a percepção da crise da autoridade na escola. Qualquer pessoa que encare o problema de perspectiva real e prática, despida dos cacoetes emancipacionistas impostos pelas abordagens teóricas hegemônicas no pensamento pedagógico dos últimos 30 anos, sabe das dificuldades para o exercício de atividade educativa nas escolas.
Professores são reféns de caprichos infanto-juvenis incontroláveis. A pedagogia "mainstream" ergueu um altar à espontaneidade criadora das crianças e jovens. As famílias entregaram-nas a babás, a creches ou ao trio DVD, videogame, computador.
Quando tudo sai de controle, apela-se a saídas extremas: decreta-se toque de recolher para adolescentes, como se fez recentemente em cidades do interior paulista.
Nessas condições, qual a capacidade instrucional e formativa da educação escolar? Não postulo a desescolarização. Afirmo, porém, em alto e bom som: os pais têm direito a escolher a educação que seus filhos receberão. A família Andrade Nunes foi apenada por não permanecer prostrada ante os prejuízos instrucionais e morais que a educação escolar poderia impor a seus filhos. Assumiu riscos. Agiu. E os resultados mostram que foi bem-sucedida. Merece apoio. Não recriminação.

LUIZ CARLOS FARIA DA SILVA, 53, mestre em educação pela PUC-SP e doutor em educação pela Unicamp, é professor adjunto do Departamento de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Maringá (PR) e educa seus dois filhos em casa desde 2006.

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